Livros de "mulheres loucas"
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Existem mesmo livros de “mulheres loucas”?

Famoso no BookTok, o gênero revela que a ideia de “mulheres loucas” é uma generalização para vários conflitos que contemplam a feminilidade

Cada vez mais, o TikTok tem se consolidado como uma plataforma de divulgação literária. Para além da indicação de clássicos, a rede dá espaço a um gênero bastante específico: os livros de “mulheres loucas”. Os capítulos dessas histórias representam uma sucessão de acontecimentos que levam as protagonistas a chegar à beira da loucura. Mas até que ponto elas realmente podem ser chamadas de “doidas”?

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), sete em cada dez pessoas que apresentam diagnóstico de depressão ou ansiedade são do sexo feminino. Apesar disso, quando irritabilidade, cansaço, melancolia ou exaustão descrevem o dia a dia de uma mulher, ela é considerada louca.

Entretanto, apesar do nome popular do gênero literário dar espaço a um estigma parcial, ele também traz luz à questões até então ignoradas. Como exemplos, o impacto da maternidade, as crises da juventude e a deriva de relacionamentos tóxicos, são temas abordados nesse tipo de literatura.

A seguir, conheça alguns títulos que abordam cenários que vão além de uma solução dada por tarja preta.

A redoma de vidro (Sylvia Plath)

A redoma de vidro
Por @mari_pats

Na esfera dos clássicos, A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath, é uma das obras mais emblemáticas quando se trata da saúde mental feminina. A trama acompanha a espiral psicológica de Esther Greenwood, uma jovem promissora que, em meio às expectativas sociais e aos desafios da juventude, mergulha em um quadro de depressão aguda.

Ao longo da narrativa, Plath dá voz aos pensamentos fragmentados e sufocantes da protagonista, revelando como a pressão por desempenho, os papéis impostos às mulheres e a ausência de acolhimento emocional corroem sua sanidade. A “redoma de vidro” torna-se metáfora do isolamento mental, da sensação de estar presa em um mundo onde tudo é observado, mas nada é verdadeiramente vivido.

Animal (Lisa Taddeo)

Animal
Por @mari_pats

Se a narrativa apresentada por Sylvia Plath tangencia a melancolia, a escolha de Lisa Taddeo desvia dessa trajetória, colocando a protagonista à beira da insanidade. Em Animal, a personagem Joan enfrenta situações diversas, que vão desde a decisão de ser mãe até abusos sofridos por homens no decorrer de sua vida.

Taddeo constrói uma figura marcada por traumas profundos, cuja raiva latente funciona como motor narrativo. Diferente da introspecção silenciosa de Plath, Joan é visceral, imprevisível e não busca aceitação social — ela quer vingança, compreensão e controle sobre seu próprio corpo. Nesse contraste, o feminino é revelado não apenas como vítima das estruturas patriarcais, mas também como agente de ruptura e enfrentamento.

O acontecimento (Annie Ernaux)

O acontecimento
Por @mari_pats

É impossível falar do gênero sem mencionar Annie Ernaux, autora que transformou experiências pessoais em narrativas literárias densas e politicamente potentes. Seus diários abordam uma variedade de temas íntimos e sociais, revelando com honestidade os pensamentos mais profundos da mente feminina.

Com destaque, O Acontecimento se apresenta como uma de suas obras mais cruas e impactantes — a trama narra, com um realismo perturbador, a jornada da protagonista ao realizar um aborto ilegal na França dos anos 1960. Nesse texto, Ernaux expõe a negligência histórica à saúde feminina e o estigma que recai sobre a decisão de não ser mãe.

Além disso, a autora disseca a solidão, o medo e a vergonha que permeiam o processo, revelando não apenas o abandono institucional, mas também a violência silenciosa imposta às mulheres em contextos de repressão e julgamento moral. O Acontecimento é, assim, uma denúncia e um testemunho visceral, que reafirma o valor da escrita feminina como instrumento de resistência.

A câmera que minha mãe me deu (Susanna Kaysen)

A câmera que minha mãe me deu
Por @mari_pats

Autora de Garota, Interrompida, Susanna Kaysen é um dos nomes mais marcantes dentro do gênero associado às chamadas “mulheres loucas”. Com uma prosa direta e sem pudores, a escritora constrói em sua obra mais conhecida um retrato íntimo e perturbador do cotidiano em uma instituição psiquiátrica, revelando o tratamento negligente e patologizante direcionado à saúde mental feminina na época. No entanto, é em A Câmera que Minha Mãe Me Deu que Kaysen se mostra ainda mais visceral. Nesse livro, ela narra a longa e angustiante trajetória em busca de um diagnóstico para a condição ginecológica que a afligia — marcada por sintomas como ardência e coceira constantes na região vaginal.

Ao relatar uma série de encaminhamentos médicos e tratamentos frustrados, Kaysen denuncia não apenas a ignorância médica sobre a anatomia e o sofrimento feminino, mas também a violência simbólica e emocional que perpassa esses atendimentos. O julgamento moral recai sobre sua sexualidade, e o descaso se intensifica nas relações íntimas, como com o namorado que insiste em manter relações sexuais e desdenha de sua dor, culminando em uma situação de abuso.

A obra, assim, expande o escopo de sua crítica: da loucura à dor física, da alienação institucional ao silenciamento do corpo feminino. Kaysen transforma o desconforto em discurso e reafirma a escrita como forma de reivindicação e sobrevivência.

A filha perdida (Elena Ferrante)

A filha perdida
Por @mari_pats

Também entre as autoras que exploram a complexidade do universo feminino, Elena Ferrante se destaca por retratar com profundidade as múltiplas nuances do que é ser mulher. A maternidade, um dos temas centrais em sua obra, ganha especial protagonismo em A Filha Perdida, livro que ganhou uma adaptação para o cinema e está disponível na Netflix.

Com uma narrativa fluida e envolvente, a trama acompanha Leda, mãe de duas filhas já crescidas. Ela decide passar férias sozinha no litoral do sul da Itália. Contudo, seu desejo por um período de tranquilidade e introspecção é interrompido pela presença de Nina, uma jovem mãe. A rotina de Nina com a filha pequena desperta em Leda lembranças e angústias profundamente enraizadas

Ao longo da narrativa, a protagonista revisita episódios marcantes de sua vida, questionando suas escolhas e confrontando o peso social da maternidade. Ferrante ilumina com crueza os dilemas que cercam esse papel: toda mulher nasceu para ser mãe? Há regras fixas sobre como exercer essa função? Até onde vai o limite da exaustão materna?

Ao desafiar o ideal romantizado da mãe abnegada, A Filha Perdida revela a solidão, o desejo, a culpa e a liberdade que coexistem nesse território tão íntimo quanto politizado. É um retrato inquietante da maternidade real, longe dos clichês, onde o silêncio das mulheres finalmente encontra voz.

Hospício é Deus: diário I (Maura Lopes Cançado)

Hospício é Deus
Por @mari_pats

Ainda no escopo da negligência à saúde mental feminina, Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado, traça uma trajetória que dialoga com obras como Garota, Interrompida. Em formato de diário, a obra reúne relatos escritos durante suas internações em instituições psiquiátricas no Brasil, revelando de forma crua e visceral a realidade dos centros de tratamento da época.

Mais do que explorar as camadas da mente em sofrimento, Maura dá voz à experiência feminina dentro do manicômio. Nesse espaço, as pacientes eram constantemente marginalizadas, medicalizadas e silenciadas. Além disso, a narrativa denuncia a brutalidade dos métodos terapêuticos. Também revela o descaso com a subjetividade das mulheres internadas e o desinteresse institucional em compreender as causas reais do sofrimento psíquico.

Ao registrar o cotidiano entre delírios, abusos e momentos de lucidez, a autora não apenas expõe a precariedade do sistema psiquiátrico, mas também reivindica um espaço para a escuta e a dignidade. Portanto, Hospício é Deus é um testemunho literário e político. É uma escrita que atravessa o delírio para alcançar a denúncia. Dessa forma, revela como o manicômio, para muitas mulheres, foi menos um espaço de cura e mais um dispositivo de opressão.

Morra, amor (Ariana Harwicz)

Morra, amor
Por @mari_pats

Na teia da maternidade, Morra, Amor, de Ariana Harwicz, é outro título de destaque ao abordar de forma brutal e poética a restrição da mulher ao papel solitário e sufocante de ser mãe. A narrativa, carregada de tensão e lirismo, mergulha nos pensamentos fragmentados de uma protagonista anônima que, isolada em uma casa no campo com o marido e o filho pequeno, vive um colapso emocional silencioso e explosivo.

Harwicz desfaz o mito da maternidade idealizada. Para isso, expõe o lado sombrio da experiência: o cansaço extremo, o ressentimento, o desejo de fuga e até mesmo a repulsa. Sua escrita é, ao mesmo tempo, feroz e sensível. Com esse estilo, desafia os limites do aceitável ao dar voz a uma mulher que não se encaixa no molde da mãe devotada. Assim, apresenta uma figura que não é vítima nem heroína, mas alguém em constante fricção com o que se espera dela.

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Escrito por: Mariana do Patrocínio | Editado por: Flavia Cavalcante

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