“A Redoma de Vidro” explicita o caminho tortuoso da mente doente de Sylvia Plath
A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath
A juventude é o período dos sonhos. O momento em que todas as possibilidades da vida se encontra há um passo de distância. Como se ao esticar os dedos, pudesse agarrar uma nova versão do futuro diariamente. Para jovens com vontade de viver e determinação para lutar por uma chances, a inconsistência da vida é um delírio. Mas abraçar o mundo pode parecer bom demais para ser verdade. A realidade tem um preço alto e consegue minar a força motriz que empurra um coração para cima e para o amanhã. Esther Greenwood permeia cada nuance dessa jornada: do salto às estrelas ao reconhecimento da finalidade da vida.
A protagonista semi-biográfica criada por Sylvia Plath no livro “A redoma de vidro” é o retrato de uma jovem que sente tudo ao mesmo tempo – e sente muito. Recém-aprovada para um curso de um mês em uma revista de moda na cidade de Nova York, a estudante encontra nessa oportunidade uma janela para ver e se conectar com o mundo. De origem humilde do subúrbio, Esther nunca recebeu nada de graça na vida – todas as suas conquistas foram alcançadas com base no esforço extremo.
O caminho até a faculdade já foi moldado por muito estudo e reconhecimento, garantindo a ela uma bolsas para conseguir se manter na universidade. Mas conquistar um degrau não é sinônimo de estabilidade. A vida universitária, que para muitos jovens representa festas, relacionamentos, amizades e aproveitar cada segundo de um momento em que as preocupações não são ainda tão adultas, pode quase que se resumir a ficar dentro do quarto estudando.
Tornar-se piada entre as outras garotas não era tão importante para Esther. Essa situação era muito pequena em comparação a todas as vidas que ela poderia viver. Sua árvore de figos, sempre tão cheia, mostrava e garantia que ela podia ser quem quisesse – poeta, mãe, artista, escritora, professora ou qualquer outra ocupação que achasse interessante. Tanta confiança e admiração pelo céu acima são encorajadores, mas perigosos. Portanto, quão estável uma mente precisa ser para conseguir lidar com a vista de baixo – das possibilidades que provavelmente não serão alcançadas e das vidas que ficarão para trás?
Em “A Redoma de Vidro”, Sylvia Plath apresenta ao leitor uma personagem curiosa e inquieta. Não é difícil se ver na Esther, em seu desejo por conhecer a vida e em sua incapacidade de cumprir sua vontade. A obra é um clássico da literatura, e também o único livro escrito pela autora. Semi-biográfico, ele é uma chave poderosa para o leitor conseguir entender um pouco da mente da própria Sylvia Plath, que sofreu por depressão durante anos, até se suicidar aos 37 anos.
Sylvia e Esther se mesclam ao longo das passagens. As vivências de Esther podem até ser fictícias – não necessariamente Sylvia andou por tais ruas de Nova York ou conheceu certas pessoas – mas seus sentimentos são tão profundos e gritantes, e justificam tanto a vivência da autora na terra, que complementam sem dificuldade a pessoa que ela foi – sonhadora e incapacitada pela própria mente.
É na viagem para Nova York que Esther começa a apresentar ao leitor seus primeiros pensamentos sobre a fatalidade de, no final das contas, não conseguir alcançar nenhuma das vidas que estavam tão perto de si. Sua figueira, tão cheia e viva, começa a morrer diante de seus olhos e não há nada que ela possa fazer para mudar isso. A vida tão agitada e colorida da cidade que nunca dorme vai adquirindo, a cada minuto, tons cinzas. O esplendor que Esther admirava tanto nas pessoas, na comida, na cidade, nos sons e cores, começa a escapar pelos seus dedos. A simples pergunta – que não é tão simples assim – de o que ela quer ser a partir dali, a desmonta em pedaços. Quer ser tanta coisa e ao mesmo tempo não consegue se ver sendo nada.
Contudo, Esther é persistente. O início de um abismo vazio não pode e nem vai ser o que a fará desistir de si. Nem mesmo quando é negada a um curso de escrita no verão. Mesmo assim, começa a perder forças. Para uma pessoa que sempre se viu como alguém especial e com talento, aceitar uma recusa é doloroso. Apesar disso, Esther continua. Se propõe a escrever um livro e enche seus figos com novas possibilidades e chances – o mundo volta a parecer cheio de possibilidades. E todas elas somem novamente.
Para persistir, é preciso minimamente confiar em si. Ou, pelo menos, acreditar. O véu da depressão não só tira de Esther a vontade e a razão para comer, tomar banho, dormir e de escrever, mas também de acreditar na própria existência. Existir, para ela, passa a não ter mais sentido. O ato de viver, respirar e se manter vivo parece insignificante – leva a lugar nenhum. Aqui, Sylvia Plath se faz ouvida por Esther; é por meio dela que a autora desenrola os fios da depressão e expande com uma lupa para o mundo o que é conviver com sua própria mente.
Ao longo das páginas, Esther – e Sylvia – mostram com detalhes os pensamentos e ideias que atormentam e guiam sua mente nos piores momentos. Aqui, é preciso uma ressalva. O sofrimento de uma mente depressiva é intenso, e pode levá-la a querer tirar a própria vida. Não por não gostar de si, mas muito por querer acabar com o próprio sentimento. A própria Esther, em certa passagem, conta como encara a própria pele à procura do que matar, mas não consegue enxergar – seu inimigo se esconde muito profundo.
Sylvia usa Esther e faz a personagem percorrer um caminho que ela também percorreu, com detalhes íntimos e intensos do processo da tentativa de suicídio. Para pessoas sensíveis ou com histórico, esse pode ser um gatilho difícil de ser lido. É um erro crucial da edição do livro não deixar explícito que há esse gatilho, principalmente por ser um tão forte e detalhado.
Encarar Esther perdida em si, se afogando em sua própria redoma de vidro, é desesperador. Não poder entrar nas linhas para abraçá-la ou conversar com ela é angustiante. O leitor tem a oportunidade de ver o antes, o durante e o depois. Em que momento ela se perdeu? É difícil dizer. Mas sentir Esther estática obriga a mente do leitor a refletir sobre si. Razões e justificativas para viver e para cultivar seus figos podem ou não aparecer. Independente disso, a lição que fica é a de manutenção – da vida, de quem somos e da nossa identidade. É um grande risco se perder junto com ela – não conseguir responder muitas das perguntas pode te enlaçar nos medos dela e de Sylvia. Mas não são uma obrigação nem uma regra.
Da mesma forma que Sylvia fala por Esther, Esther pode falar por você. Não indico que essa semelhança e conversa aconteça. Mas a intimidade com que a história e a vida dela é contada, de forma tão intensa e única, quase obriga o leitor a se relacionar.
Quem nunca teve dúvidas sobre quem é? Sobre o futuro? O que gosta e não gosta de fazer? Sobre quem quer ser e com quem quer estar? A tristeza faz parte dos sentimentos humanos – quando tão profunda assim, é um problema e precisa procurar ajuda. Mas, no geral, são sentimentos. No meio da vida perturbada pela falta de tempo e de relações complexas, é um respiro encontrar páginas que são puro sentimento. Dói saber que Sylvia também sentiu tanta dor, mas é uma honra poder compartilhar um pouco de quem ela foi em A Redoma de Vidro.
Escrito por: Mavi Faria | Editado por: Gabriela Hirata e Flávia Pereira