A moda e a desconstrução do binarismo
A ideia de que roupas possuem gênero como conhecemos atualmente, só foi imposta a sociedade entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Um exemplo claro disso são os sapatos de salto alto: inicialmente, eram usados somente por homens, como uma forma de demonstração de poder da alta sociedade, e hoje é um adereço para as mulheres, utilizado para trazer a ideia de feminilidade.
Ainda que a ideia de que roupas possuem gênero e as pessoas não devem usar nada que não esteja dentro do que lhes foi imposto no dia em que nasceram, esteja enraizada na sociedade, mudanças acontecem eventualmente. Afinal, a própria calça, que hoje é usada por homens e mulheres, antes era somente para pessoas do gênero masculino.
Conforme os anos se passam, temos testemunhado um movimento social importante, que busca a desconstrução do chamado binarismo de gênero, ideia que caracteriza todas as pessoas dentro de duas únicas possibilidades: feminino ou masculino.
Inegavelmente, a ideia de que existem somente gêneros binários, coloca pessoas dentro de classificações extremamente restritivas, por isso, tem sido questionada em diversas esferas da sociedade. Assim, a moda tem se mostrado um poderoso instrumento de desconstrução, ajudando a desafiar a ideia de que gênero é estritamente binário.
Afinal, roupas e acessórios permitem que pessoas com expressões de identidades mais fluidas, que não se encaixam nos padrões impostos tradicionalmente do que é adequado para homens e mulheres, desafiem o ideal social de gênero e se expressem de maneira que as façam se sentir à vontade, ao passo que promovem a inclusão e a diversidade.
Moda como expressão de identidade
A moda tem o poder de transmitir mensagens e expressar identidades pessoais. Por isso, cada vez mais vemos pessoas utilizando roupas para expressar sua identidade de gênero de forma autêntica, sem se importar com os padrões impostos. Estilos andrógenos, roupas que brincam com a fluidez entre gêneros, modelagens voltadas para o não-binário e acessórios antes considerados femininos, que hoje são usados por todos, se tornam mais populares.
Ao passo que a moda vem como um auxílio para quebrar barreiras que restringem a liberdade de expressão, a ideia de androginia se torna mais popular. Consequentemente, várias marcas inovadoras estão surgindo nos últimos anos para atender essa demanda de moda inclusiva. Estas, ganharam um impulso significativo nos últimos 5 a 10 anos, e, sua maior preocupação tem sido: colocar em prática a desconstrução de gênero, criando roupas que se adaptam a diversidades de corpos existentes para que estas encaixem na autenticidade de cada indivíduo que as utilizarem.
Tivemos a oportunidade de conversar com a fundadora da marca Viva Celina, Cecéu, que trabalha em cima desta filosofia. A seguir, está um pouco do que ela nos contou sobre sua marca: como surgiu a ideia de criar roupas agênero; a importância desse tipo de iniciativa atualmente; e, também sua visão sobre os desafios de se criar uma moda andrógina em um mundo onde a mudança está acontecendo, mas ainda existe muito julgamento e muitas pessoas que não concordam que roupas não deveriam ter gênero.
A origem da Viva Celina
Cecéu, fundadora da marca Viva Celina, contou que ela é designer de moda a mais de 10 anos, mas a ideia da marca de roupas agênero surgiu entre os anos de 2015 e 2016, quando pensou em criar sua própria marca e partiu em busca de quais seriam os pilares do que, mais tarde, se tornaria a Viva Celina. Assim, os ideais escolhidos foram: a questão de quem faz suas peças, outro tema que vem sendo bastante comentado atualmente; o SlowFashion; por consequência, sustentabilidade; e finalmente o agênero.
Um acontecimento que mostrou para Cecéu a importância de roupas que fujam da ideia binária de gênero, foi o ato de levar sua filha para comprar roupas. Ela se deu conta que a menina não se identificava com as peças da sessão feminina. Ao passo que grande parte das roupas para as meninas eram cheias de enfeites, desenhos de princesas e em tons de rosa, as da sessão considerada masculina possuíam desenhos de super-heróis e eram muito mais confortáveis.
Ademais, ela conta que dez anos atrás não se falava muito do assunto gênero dentro da moda. Entretanto, ela começou a questionar sobre o porquê de rótulos serem tão importantes, e entender que não cabia a indústria decidir o que cada um deve vestir. Antes de tudo, pessoas são diversas, e cada uma deve poder usar o que a faz se sentir confortável.
Os desafios de uma marca não-binária
Quando perguntado sobre os desafios de se produzir roupas sem gênero, Cecéu contou que, com certeza, o mais difícil é conseguir uma boa modelagem. Eles estão lidando com corpos diversos, pois o Brasil é um país com corpos variados, mesmo quando separados entre femininos e masculinos. Por isso, produzir sem diferenciar gênero em um local com tantos biotipos, se torna ainda mais difícil.
Assim, cima de tudo, para ela, esta é a chave para produzir moda agênero: entender o que seu público-alvo quer e gosta de vestir; e principalmente estudar modelagem, para, assim, criar peças cada vez mais inclusivas, que vistam corpos diversos.
A expectativa do público
Apesar da mudança já estar acontecendo, muitas pessoas ainda possuem preconceitos com uma moda que não diferencia o gênero de seus clientes. Por isso, perguntamos a Cecéu como a Viva Celina costuma lidar com a expectativa do público em cima de normas tradicionais de gênero, e, em sua opinião, esta não é uma questão.
Cecéu conta que, apesar de existirem pessoas sem gênero comprando suas peças, este não é o foco da marca. Acima de tudo, verdadeiro objetivo é deixar claro para todos que as roupas não possuem gênero definido, pois a indústria deve simplesmente produzir peças, não determinar o gênero delas, já que roupas não têm gênero, as pessoas sim.
Assim sendo, a Viva Celina busca mostrar isso produzindo uma quantidade variada de peças, que vão desde o moletom até a mini saia, para que as pessoas possam desconstruir essa ideia binária em cima das roupas, olhando para as peças como olhavam para o unissex antigamente.
Afinal, a moda colabora para a mudança?
Assim, ao observar o histórico do binarismo na moda, a mudança da visão de gênero nos últimos anos, e a visão sobre o assunto compartilhada por Cecéu da Viva Celina, se torna possível perceber que a desconstrução do binarismo de gênero na moda está tendo um impacto significativo na sociedade contemporânea.
Inegavelmente, as normas tradicionais de vestimenta estão sendo desafiadas. Ao passo que isso acontece, a moda contribui para a quebra de estigmas e preconceitos associados a identidade de gênero, que muitas vezes cai como preconceito em cima da comunidade LGBTQIA+, já que esta costuma fugir dos padrões de aparência impostos pela sociedade com mais frequência.
Moda como agente de mudança
A moda não é a única chave. Ela sozinha não pode mudar o pensamento de toda uma sociedade. Mas, por ser muito presente, sendo algo que todos têm contato a todo momento, a aceitação da diversidade de expressão de gênero neste meio tem impulsionado a aceitação em outras áreas. Por isso, o mercado da moda está ajudando a alcançar uma cultura mais inclusiva e respeitosa, já que a criação de roupas sem gênero permite que as pessoas explorem sua identidade de forma mais autêntica, podendo se sentir livres para serem quem são.
Ainda que o progresso até o momento tenha sido notável e bastante satisfatório, existem muitos desafios a serem enfrentados para uma total aceitação do não-binarismo na moda. Uma grande quantidade de pessoas resistem à mudança, consequentemente, ainda ocorrem inúmeras reações negativas e preconceituosas em cima de expressões de gênero fluidas.
Mas, à medida que mais pessoas se conscientizam sobre a importância desse movimento, elas se tornam também apoiadoras da causa e agentes de mudança. Ao passo que cresce o apoio social ao tema, ocorre o aumento da demanda de marcas mais inclusivas. Consequentemente, se abre espaço para cada vez mais designers e empresas inovadoras fazerem a diferença com suas criações e abordagens de negócios mais inclusivos.