Foto do acervo pessoal
Comportamento,  Moda,  Sociedade

Latina demais para ser neutra

Em 2022, cheguei a Madrid em pleno inverno e com poucas roupas. Fazia três graus e eu precisava de um casaco desses bem quentes. As ruas estavam tomadas por jaquetas puffers pretas (aquelas acolchoadas com “gominhos”) e, olhando em volta, parecia que todo mundo usava o mesmo uniforme, uma multidão camuflada, pasteurizada. Roupa para enfrentar o cotidiano. 

Em um domingo gélido, meu marido e eu fomos conhecer El Rastro, um mercado ao ar livre que acontece aos domingos e feriados no centro histórico de Madrid, no popular bairro de La Latina. Andando em meio às barracas com passo lento e olhar atento, na intenção de encontrar um tesouro (por menos de 20 euros, claro), fui fisgada por ela: uma puffer laranja Aperol, tomada de estampas coloridas, alegres e quentes, como se carregasse dentro de si um pedaço de verão — ou um salgadinho Cheetos gigante, como carinhosamente percebi um tempo depois.

Aquela puffer se tornou mais do que um casaco: era uma peça única, célebre, que simbolizava a alegria de estar vivendo um sonho. Durante três meses, virou também uma afirmação pessoal, um manifesto contra a chatice do neutro, um lembrete diário para encontrar a singularidade e o entusiasmo em dias cinzentos e frios. Onde quer que a gente esteja, vale a pena colocar os óculos mágicos e treinar o olhar para não passar despercebido o colorido do mundo.

“Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.”

PRADO, A. Bagagem. São Paulo: Siciliano. 1993. p. 36.
Latina demais para ser neutra
Foto: acervo pessoal

Anos depois, ao ver a primeira H&M abrir as portas no Brasil com araras cheias de roupas pretas, cinzas e beges, a jaqueta laranja e Madrid voltaram à memória. Em paralelo, o meme “Latina demais para ser neutra/básica” que circula na internet é sinal do fim dos tempos da core Clean Girl e seu elitismo já batido. Será que a nossa identidade cabe numa cartela minimalista de catálogo ou em uma estética de gótica suave importada?

A Wandinha de Xique-Xique, personagem gótica suave reinterpretada na Bahia, com humor e autenticidade, mostra a habilidade que o Brasil tem de transformar qualquer referência importada em algo nosso, mas também funciona como metáfora da nossa moda: Eu não sei o que você fez no verão passado, mas cuidado com as reinterpretações. Volte duas casas quem já está se coçando para comprar mais um look preto de poliéster e se encaixar em uma tendência de um verão que não é nosso, e pior, em um estilo que talvez nem traduza genuinamente o que somos e podemos ser.

É nesse contexto de efervescência global (política e econômica) que estamos vivendo que a nossa moda se torna mais do que estética: é resposta. Enquanto o fast fashion insiste em uniformizar para vender, a criação nacional pode encontrar os seus próprios caminhos. Nos bordados que atravessam gerações, nas rendas renascença, no crochê, no jeans reinventado em oficinas independentes, nas marcas que desafiam o bege com um arco-íris de possibilidades. Cada peça carrega uma história e, nessa artesania, a moda sustentável encontra a sua força.

Vestir cor, textura e história é mais do que escolher roupa: é afirmar identidade. E talvez essa seja a questão que a moda brasileira precise encarar de frente. Não se trata de competir com o bege europeu, mas de reconhecer que somos feitos de tantas tramas, tantas narrativas, ainda que sejamos como adolescentes, rebeldes, confrontando o status quo. O problema nunca foi faltar estilo, o core. O problema é insistir em se encaixar onde nunca fomos feitos para caber. Você já viu o tamanho do Brasil? 

Escrito por: Tayane Rodrigues | Editado por: Ana Carolina Gomes

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