Como agências recrutam modelos em campos de refugiados
Uma investigação exclusiva do Sunday Times apontou que as principais agências de moda estão utilizando modelos recrutadas em campos no Quênia e Sudão do Sul
O jornal dominical britânico The Sunday Times, em uma reportagem especial, entrevistou dezenas de modelos. Algumas ainda trabalhavam na Europa, com sucesso financeiro, enquanto outras voltaram para casa sem ter ganhado nada sequer. Kakuma, no Quénia, é um dos maiores campos de refugiados do mundo. É gerido pelo Comissário das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e é o lar de cerca de 280.000 pessoas. Mais de metade são do Sudão do Sul, o país mais pobre do mundo, um lugar onde milhões foram mortos e deslocados no meio de uma guerra civil.
O acampamento se estende por 15 milhas, tem 55 escolas e é compostos por lojas que vendem roupas, utensílios domésticos e alimentos. As casas são construídas de tijolos com telhados de ferro, os banheiros são buracos no chão, a água limpa é racionada e a eletricidade é escassa. A alimentação foi recentemente cortada em 40% e muitas pessoas vivem com apenas uma refeição por dia. As pessoas que vivem nessas condições estão expostas à pobreza extrema e ao risco de doenças. Muitas mulheres jovens são casadas à força e, como relata a Anistia Internacional, pessoas LGBTQIA+ são regularmente submetidas a crimes de ódio, violência e outras graves violações dos direitos humanos.
São nesses lugares que scouters procuram talentos e enviam fotos para seus supostos chefes, a milhares de distância — alguns vasculham as contas do Instagram dessas modelos — sendo mulheres, em sua maioria, e homens bem jovens, desesperados para adentrarem na profissão como forma de escapar de sua realidade. É exatamente disso que as agências se aproveitam, prometendo grandes resultados enquanto ignoram os riscos e a alta probabilidade de levarem esses modelos de volta à estaca zero, sem dinheiro e sem perspectivas.
Os modelos que passam pela primeira rodada de recrutamento recebem uma autorização de trabalho ou permissão do governo para deixar o campo de refugiados e são levados para Nairóbi, onde recebem um passaporte e visto e são reservados em um voo para a Europa. Lá eles são colocados em acomodações e recebem uma bolsa de 70-100 euros por semana para comida e despesas. Ficam na Europa por algumas semanas, mas se não conseguirem trabalho remunerado suficiente ou forem considerados inaptos, eles retornam para casa. Muitos, porque são considerados muito desnutridos ou inexperientes para o trabalho.
Vestindo um vestido longo e dourado, Achol Malual Jau, caminhou com confiança ao longo da passarela na London Fashion Week deste ano. A modelo sul-sudanesa, de 23 anos, que havia praticado por meses o catwalk em seu campo de refugiados, descreveu sua experiência em participar de um desfile, no mês de fevereiro, como “incrível”.
Apenas cinco meses depois, no entanto, Jau estava de volta ao acampamento no Quênia. O programa que ela acreditava que proporcionaria sua carreira de modelo, era como uma memória distante. “Eu trabalhei duro, mas voltei sem dinheiro. Muitas pessoas pensam que eu tenho dinheiro porque fui para a Europa — eu digo que não tenho nada”, disse Jau da cabana que ela mora com sua família no campo de refugiados de Kakuma.
O Sunday Times também compartilhou a história de Nyabalang Gatwech Pur Yien, de 24 anos, que passou 17 dias na Europa modelando antes de retornar à Europa. Apesar de seus sonhos de seguir uma carreira de modelo, Nyabalang foi rapidamente enviada de volta ao seu acampamento. Apenas três semanas depois, ela recebeu um e-mail da Select, afirmando que devia à agência €2.769,46.
Nyabalang foi explorada pela Isis Models, uma agência com sede em Londres que trabalha com a Select há oito anos. É administrado pela empresária nigeriana Joan Okorodudu de sua casa em Walthamstow. A Select levou Nyabalang para Paris no ano passado e as mensagens de texto mostram que ela está tentando negociar as dívidas da viagem. Em resposta às suas mensagens, um agente da Select disse a ela que as despesas de sua viagem, incluindo o hotel, o voo e o dinheiro, não foram fornecidas gratuitamente. Semanas depois de responderem seu e-mail, Nyabalang tentou tirar sua própria vida.
Depois de ser levada para Paris pela Select, Nyabalang participou de castings para marcas de luxo, incluindo Yves Saint Laurent e Valentino, mas não foi escolhida para nenhum trabalho remunerado. Após seu retorno a Kakuma, a Isis Models lhe disse que só poderia rescindir seu contrato depois que sua dívida fosse paga. Certamente, entre os danos que causam, há o golpe: as agências europeias financiam vistos e voos, que geralmente precisam ser reembolsados quando a modelo começa a ganhar dinheiro. Então, se uma modelo é rejeitada, por qualquer motivo, ou não ganha o suficiente, ela não apenas retorna para casa, mas acaba com uma pilha de dívidas com a agência.
Insiders dizem que o interesse em modelos africanas aumentou devido à demanda por inclusão e graças ao sucesso de Alek Wek e Adut Akech, que fugiram do Sudão para o Reino Unido quando adolescentes, e são o rosto de marcas como Chanel, Saint Laurent e Versace.
Carole White, diretora da Premier Model Management e ex-agente da supermodelo Naomi Campbell, confirma isso: “No momento, há muita demanda por modelos africanos: mulheres, homens, meninos e meninas.” Se antes, o visual comum era do Leste Europeu, agora mal olhamos para as garotas russas.” A maioria das marcas não sabe de onde é a modelo que contratam ou o que acontece com elas após um casting ou sessão de fotos. Eles confiam na agência para se comportar eticamente e pagar à modelo o que é devido a ela.“
As agências ainda disseram que o recrutamento significa dar aos refugiados uma melhor chance
de vida, ao mesmo tempo que tornam a passarela mais diversificada. Como Peter Adediran, fundador do escritório de advocacia londrino Pail, especializado em direito midiático e tecnologia, tendo 21 anos de experiência na indústria de modelagem, nos lembra que, as modelos geralmente vêm da Europa Oriental ou da África, são vulneráveis, ainda não possuem discernimento o suficiente sobre contratos e seus pais acham que estão dando a elas a oportunidade de realizar seus sonhos, enquanto as agências lhes vendem ilusões.”
“Elas são tão jovens que não têm experiência em lidar com dinheiro e finanças”, ele ressalta. As agências devem ter a responsabilidade de ser claras e educar as modelos a partir do momento em que as descobrem e o que esperam delas.”
A Select Model Management disse que conduzirá uma investigação e revisará suas práticas de recrutamento em relação aos modelos refugiados, que são particularmente vulneráveis. Mas Puglisi continuou a dizer que o uso de modelos do campo de refugiados africanos melhorou a diversidade de desfiles de moda. Ele escreveu em um comunicado: “Você quer voltar aos desfiles de moda totalmente brancos?”
Nyabalang Gatwech Pur Yien, que é uma das jovens que não tiveram a sorte prometida, diz: “Se o mundo quer modelos de campos de refugiados, deve cuidar deles. Não somos escória, somos humanos e precisamos ser tratados como humanos, com dignidade.” Cada vez mais, discutimos a falta de diversidade nas passarelas. Nós nos perguntamos por que as semanas de moda ainda são dominadas por modelos brancas, muito magras, e por que não há mais espaço para outras etnias, idades e tamanhos, mas já nos perguntamos qual é o preço da inclusão para essas agências?
Escrito por: Louize Lima | Editado por: Flávia Pereira
3 Comentários
BARBARA DA SILVA PAULA
Que pauta necessária! Obrigada pela abordagem e crítica tão emergente.
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