
Entre whitewashing e Charli XCX: ainda é Wuthering Heights?
Com estética glamourosa, cenas explícitas e elenco controverso, adaptação dirigida por Emerald Fennell é acusada de “branquear” Heathcliff e transformar tragédia gótica em fantasia sexual.
O apagamento de Heathcliff e a polêmica do elenco
A nova adaptação cinematográfica de Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes), dirigida por Emerald Fennell, ainda nem chegou aos cinemas, mas já está envolvida em uma série de controvérsias. O longa, previsto para estrear em fevereiro de 2026, conta com Jacob Elordi no papel de Heathcliff e Margot Robbie como Cathy Earnshaw. No entanto, fãs do romance gótico de Emily Brontë, publicado originalmente em 1847, têm levantado diversas críticas à produção, que vão desde escolhas de elenco até mudanças significativas no tom da narrativa.
No início do mês de setembro, saiu o primeiro teaser do filme, o que causou desconforto imediato nas redes sociais, especialmente por apresentar o longa como um romance visualmente glamouroso e erótico, bastante distante do ambiente sombrio e emocionalmente devastador do livro.
Uma das principais críticas diz respeito à escolha de Jacob Elordi para interpretar Heathcliff. No romance original, o personagem é descrito como de pele escura e traços que o tornam um “outsider” — frequentemente chamado de “gypsy” (cigano), “dark-skinned” (pele escura) e “moreno”. Ele é, inclusive, alvo de racismo e xenofobia pelos moradores da região onde é criado. No entanto, Elordi é um ator branco, o que levantou acusações de whitewashing — ou seja, o branqueamento intencional ou simbólico de personagens racializados.
O debate ganhou ainda mais força com os comentários de usuários na plataforma X (antigo Twitter), que criticaram o tom da nova adaptação, apontando que o filme parece distorcer a essência da história original e descreveram a adaptação como um “dark romance do booktok.”

Reprodução: X

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Em entrevista ao The Telegraph, o diretor do Brontë Writing Center, Michael Stewart, afirmou sentir “com bastante convicção que a intenção de Emily era que Heathcliff fosse negro ou mestiço, e há muitas pistas no texto que sugerem isso”. Já a pesquisadora Claire O’Callaghan, editora-chefe da revista acadêmica Brontë Studies, destacou que a escolha de Emerald Fennell por um ator branco “ignora a ambiguidade que existe, e com isso, acaba deixando de lado as possíveis leituras que Emily Brontë propõe, que são tão ricas quanto qualquer outra interpretação.”
Apesar da polêmica, a diretora de elenco Kharmel Cochrane defendeu a escolha de Elordi, alegando que “É apenas um livro. Não é baseado na vida real. É tudo arte,” conforme declarou a revista Entertainment Weekly.
Uma adaptação que talvez nunca quis ser adaptação
Mas as críticas não param por aí. A abordagem da diretora Emerald Fennell também tem sido alvo de desconfiança. Conhecida por filmes provocativos como Promising Young Woman (2020) e Saltburn (2023), Fennell ganhou reputação por explorar o lado mais grotesco ou transgressor de relações humanas. Embora essa abordagem funcione para certos tipos de histórias, alguns internautas questionam se a diretora está convertendo uma tragédia gótica em um “self-insert” — termo usado para designar obras onde o criador insere fantasias ou desejos pessoais de forma escancarada.

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Além disso, a presença de Charli XCX na trilha sonora do filme também reforça essa ruptura com a tradição gótica. Conhecida por seu estilo hiperpop, experimental e sensual, a artista britânica foi anunciada como responsável pela trilha original do longa — uma decisão que, para alguns, contribui para tornar a experiência mais sensorial, contemporânea e até provocadora. Por outro lado, a escolha também levantou críticas entre fãs da obra original, que veem na sonoridade eletrônica de Charli uma quebra definitiva com o clima sinistro e emocionalmente denso da obra de Brontë.

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É claro que adaptações literárias sempre carregam o peso da reinvenção — diretores e roteiristas frequentemente optam por modernizações, recortes ou experimentações estéticas. No entanto, o que está em jogo aqui, segundo críticos e fãs, não é apenas uma mudança de estilo, mas sim uma reformulação ideológica do texto original.
Vale lembrar que o filme ainda não foi lançado, e até o momento só tivemos acesso a imagens e trechos promocionais. Ou seja: parte da crítica se baseia em percepções preliminares, e o resultado final pode surpreender. Caso a obra opte conscientemente por não se apresentar como uma adaptação fiel de Wuthering Heights, mas sim como uma história inspirada em seus elementos, isso pode se revelar algo inovador e até brilhante.
Nesse sentido, uma teoria que ganhou força no TikTok e se espalhou pelo X sugere justamente essa possibilidade: de que o novo longa não seja, de fato, uma adaptação direta. O título entre aspas, os figurinos que não se encaixam totalmente na época retratada no livro e até mesmo certas escolhas visuais presentes no trailer alimentaram a interpretação de que a personagem de Margot Robbie não seria Catherine Earnshaw, mas sim uma leitora obcecada pela obra que passa a fantasiar estar dentro da história. Caso essa hipótese se confirme, o filme deixaria de ser apenas uma adaptação polêmica e se tornaria uma metalinguagem sobre leitura, obsessão e a própria relação entre público e literatura.

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No fim das contas, adaptar um clássico como Wuthering Heights não exige apenas criatividade — exige também responsabilidade. Obras como a de Emily Brontë carregam camadas históricas, sociais e simbólicas que resistem ao tempo justamente por sua complexidade. Ignorar isso em nome de uma “visão artística” pode até gerar um produto visualmente instigante, mas esvazia o peso da obra original. Se o novo filme for, de fato, uma releitura livre e assumida, talvez tenha algo novo a dizer, e isso pode ser válido. Mas se insiste em se apresentar como adaptação, enquanto distorce seus pilares mais essenciais, talvez reste apenas uma dúvida incômoda: por que chamar de Wuthering Heights aquilo que não quer ser Wuthering Heights?
Escrito por: Manuella Centeno | Editado por: Ana Carolina Gomes
