
Vintage Acelerado: A Contradição no Consumo de Segunda Mão
A prática de garimpar roupas vintage ganhou força entre o nicho de pessoas que consomem de brechó, o que envolve a geração Z, associada à autenticidade e à consciência ambiental, e os millenials. No entanto, a tendência do haul, popularizada nas redes sociais, transformou esse consumo em algo massivo e performático. Criadores acumulam peças de brechós em vídeos que exaltam a quantidade, gerando engajamento e até lucro com revendas. Plataformas como TikTok e Depop impulsionam essa lógica, esvaziando o discurso sustentável. Portanto, observamos um paradoxo: o vintage como nova estética do consumo acelerado.

Se antes o ato de garimpar envolvia tempo, paciência e uma dose de sorte, hoje ele se converteu em um espetáculo público. Nas redes, a experiência não se resume a mostrar um achado especial, mas sim a empilhar sacolas e cabides diante da câmera, embalados por músicas e cortes rápidos. Esse show-and-tell digital não só desperta curiosidade como também alimenta a ideia de que é preciso comprar muito para ter relevância, que é um reflexo direto da estética das hauls, em que quantidade e variedade se tornam moeda social.
O paradoxo da velocidade no consumo lento
Em relação às plataformas mencionadas (Depop, TikTok), assim como brechós online alimentam uma reposição quase diária. O que deveria ser um movimento oposto à lógica das fast fashions, valorizando peças duráveis e exclusivas, muitas vezes acaba replicando o mesmo ciclo de novidade constante. O apelo visual e o imediatismo das postagens incentivam compras impulsivas, esvaziando parte do discurso ambiental que acompanha o consumo de segunda mão. Diante disso, hashtags como #haul (nome para compras em grandes volumes), que antes estava associada apenas a compras Shein e #therealrealhaul se tornam cada vez mais vinculadas à compra de segunda mão.
Por outro lado, há quem veja nesses conteúdos uma porta de entrada para explorar o universo do vintage. Para muitos jovens, é o primeiro contato com estilos, marcas e histórias de moda que não encontrariam no varejo tradicional. Mas, nesse mesmo movimento, está a armadilha: transformar o garimpo em mais uma engrenagem da lógica de “comprar para mostrar”, onde o valor simbólico da peça se perde diante da pressa de produzir o próximo vídeo.
Quando o discurso sustentável perde fôlego
À medida que o consumo vintage adota a lógica acelerada do fast fashion, surgem questões sobre até que ponto essa prática continua alinhada à proposta de uma moda mais responsável. A linha entre consumo consciente e hiperconsumo fica cada vez mais tênue, especialmente quando as compras são impulsionadas por tendências virais e algoritmos que recompensam a frequência de postagens. Nesse cenário, entender os impactos ambientais e sociais desse novo comportamento se torna essencial, e é justamente sobre isso que conversamos com Carol Lardoza, historiadora e mestranda em Design e Cultura (UFRJ), que analisa o quanto o “vintage acelerado” pode ou não coexistir com os princípios de um consumo ético.

Jarina: Como você definiria o fenômeno da haulification dentro do universo da moda sustentável?
Carol: Então, eu fui dar uma pesquisada antes para eu te enviar essa pergunta mais delimitada e detalhada também em relação ao que eu penso. Pelo que eu vi, existe esse fenômeno de transformar esse consumo em espetáculo nas redes sociais, isso acaba caindo numa contradição, ao meu ver, dentro do discurso da moda sustentável. Mesmo que essa exibição de peças seja advinda de brechós, ela reforça a lógica da acumulação, dessa rotatividade super constante que não é o que a gente deseja dentro da moda circular.
E é esse olhar menos apurado para o que a gente já tem no nosso guarda-roupa e em consequência dessa fetichização da compra consciente que por muita das vezes isso pode passar nesse lugar de “poxa eu estou comprando de segunda mão ou no slow fashion, então já é o suficiente”, mas a gente precisa dar um passo atrás e entender como é o nosso comportamento de compra, porque a gente compra em viés psicológico, de rotina comportamental e social, para que a gente tenha de fato essa amplitude sobre o que é o consumo consciente. Porque no fundo o que muda não é só o sistema, mas apenas o canal por onde a gente se expressa. E o consumo continua sendo centro se a gente não repensa essa nossa forma de adquirir as roupas com esse olhar desconectado do nosso estilo pessoal, sabe?
Jarina: Na sua visão, por que esse tipo de conteúdo performático se tornou tão popular, mesmo entre consumidores que se dizem conscientes?
Carol: Esse tipo de conteúdo performático entrega exatamente o que o algoritmo recompensa, que é essa quantidade massiva, essa novidade, essa estética pelo desejo, essa atração ali não só pelo novo. Como a gente está habituado a ver, conteúdos de moda, mas também pelo produto em si. E que, de verdade, assim de uma forma bem íntima para algumas pessoas, é quase um prazer visual. Aquela descoberta que facilmente a gente precisa refletir com criticidade. E existe sim uma pressão para que mesmo os consumidores conscientes pareçam conscientes.
Então mostrar que “olha eu comprei, mas comprei de um brechó, comprei, mas comprei de uma marca artesanal” tem sempre essa justificativa, e se a gente não pensa isso em detalhes a gente acaba entrando de novo nessa lógica do exibicionismo de estar ali massivamente comprando novas coisas E aí eu acho que existe um ponto de você tentar ter essa análise do que pode ser inserido na sua rotina, que é prático, usual e relevante, e não só mais um garimpo “porque é legal” ou “muito diferente”. É óbvio que a gente precisa divulgar essas marcas e estar sempre debatendo sobre isso. Mas há esse ponto de atenção para gente não exagerar e mostrar que é só mais um consumo. Independente se é nesses espaços mais sustentáveis, sabe?
Jarina: É possível dizer que o garimpo vintage está sendo cooptado pela lógica do fast fashion?
Carol: Sobre o garimpo vintage e essa questão da lógica do fast fashion, é uma preocupação latente que eu tenho e porque é perceptível algumas iniciações de brechós passarem por essa organização, até de espaços instagramáveis, coleções temáticas, tendências do momento, além dessa reposição constante. Esse garimpo, que era sobre tempo, memória, história, paciência, essa descoberta virou um processo assim “ganha-ganha”, sabe? Super acelerado, muitas vezes mediados por curadorias assim, “super estéticas” e para um nicho específico.
Então “achados Farm”, sabe? Ou algo muito voltado para um estilo de vida de um recorte de pessoas, e isso apaga um pouco a questão da diversidade real do acervo e se aproxima da lógica do fast fashion, e é claro que fazendo as devidas ressalvas porque o fast fashion ele tem muitas outras camadas problemáticas. Desde a produção, à forma como ele paga as pessoas que estão dentro do processo, que normalmente envolve questões exploratórias. Então o brechó não apóia o fast fashion, mas a gente tem que tomar cuidado na aceleração desse consumo dentro mesmo desses espaços mais sustentáveis.
Jarina: O discurso sustentável ainda se sustenta quando o vintage é consumido em excesso?
Carol: Para mim, a sustentabilidade exige moderação, intenção e muita responsabilidade. E aí quando a gente fala de excesso, mesmo sendo de segunda mão, ainda é um excesso. E essa é a minha grande preocupação. Esse acúmulo de roupas vintage, sem necessidade, em nome de uma estética e de um conteúdo para as redes sociais que talvez vá viralizar reproduz sim essa lógica muito acelerada de fast fashions, e me preocupa comprar usado por ser um ato mais aproximado da sustentabilidade.

Mas a diferença está quando colocamos essa intenção do porquê, na quantidade, se sabemos um pouco mais sobre essa peça, temos um cuidado, um carinho para ela durar no nosso armário, entendemos sobre esse tecido, que contribui para ele ter uma circularidade depois que sair do nosso armário, que vai para outra pessoa e será usado. Então, a gente consegue entender o início, meio e fim desse processo circular, e nem diria fim. Porque de fato é circular, mas que a gente consiga ter as dimensões reais de cada passo que essa roupa pode dar. E quando entramos nessa lógica de que é instigante e interessante garimpar, podemos acabar perdendo um pouco da nuance que é importante para a gente ter um olhar mais crítico e sustentável.
Jarina: Que efeitos esse consumo acelerado de peças vintage tem gerado nos brechós locais e nas comunidades que antes dependiam desses espaços?
Carol: É importante que a gente entenda que os brechós locais, principalmente em territórios suburbanos e periféricos, sempre exerceram um papel muito importante nesse acesso à roupa. Nossa noção de estilo é a da gente se identificar com algumas coisas que encontramos lá ou estilizar, customizar de acordo com a nossa necessidade. E claro que tem um ponto de atenção nessa crescente. Nesse consumo acelerado de peças vintage, no interesse de públicos com maior poder aquisitivo de e de compra também. É a perspectiva desses espaços como se fosse algo quase “exótico”. “Nossa, deixa eu entender o que tem dentro desse brechó”, “amei ir no bazar de igreja que tem peças a dois reais”.
É necessário você ter esse impulso de compra? É esse o comportamento? Isso também pode pressionar a um aumento de preços e trazer uma homogeneização dos acervos em busca do que é a tendência do que essas pessoas costumam comprar fora do brechó. E é nesse brechó que talvez elas possam se identificar mais e gostar de garimpar ali, o que pode afastar quem realmente buscou o acesso ao vestuário nesses espaços.
Jarina: A gentrificação dos brechós é um fenômeno real? Quem sai ganhando e quem sai perdendo nesse novo mercado?
Carol: Sobre gentrificação, eu entendo que em alguns níveis com a ascensão importante do nosso debate sobre moda circular, pode ser que também tenhamos perdido espaços para quem sempre encontrou mais roupas dentro do próprio orçamento, por conta da dinâmica da circulação de peças mais em conta. Os pequenos vendedores muitas das vezes não conseguem competir com empreendimentos maiores. Portanto, é necessário um duplo trabalho, não só da curadoria do espaço físico, mas também olhar para o digital, porque hoje faz você crescer e ter uma competitividade mais apurada.

Então, se você tiver um brechó físico, você precisa estar no digital, entender sobre ele, produzir conteúdo, se conectar com tendências. E isso colabora para que esse mercado tenha uma nova roupagem, para que esse novo olhar não esteja apenas em relação a fazer com que essas peças circulem, mas também para produzir o desejo pelo usado e fazer com que as pessoas entendam, quase num processo educativo. E aí é difícil essa competição de quem tem mais tempo e dinheiro para investir em espaço de trocas e público, o que é uma preocupação.
Jarina: O aumento dos preços em brechós pode ser atribuído à popularização dos hauls e da revenda por influenciadores?
Carol: Existem algumas demandas que surgem a partir da estética de determinadas peças, jaquetas, jeans oversized dos anos 90, moletom dos anos 2000, e isso acaba inflando o mercado vintage em algum nível. É importante pra gente ampliar esse debate, mas o que antes podia custar cinquenta, quarenta reais, a gente já vê custando duzentos reais ou mais. É claro que essa questão da precificação tem uma problemática que envolve o trabalho dessas pessoas, o tempo, que a gente quer que esteja num processo sustentável e que as pessoas sejam bem pagas, porque isso também faz parte da sustentabilidade. Olhar para o social, para a mão-de-obra e entendê-la também como protagonista e pagá-la do jeito certo.
Então, eu não gosto muito de esbarrar nessa questão do preço porque a gente entende que ali tem um processo de curadoria. Mas é importante que a gente entenda que se inflamos esse valor a mais do que uma base do mercado, afastamos determinado público e aproximamos outro. Aí esse conteúdo que deveria inspirar para o consumo consciente acaba valorizando uma lógica de escassez, e é desejo. Portanto, esse é o meu ponto de atenção nessa problemática, de não usarmos apenas a etiqueta do sustentável e da moda circular, mas entender que é um processo educativo, das pessoas compreenderem porque aquilo talvez coubesse no armário dela, não só pela estética, pelo interesse no garimpo. A grande questão é entender que faz parte de um processo maior, com um propósito muito maior que é a moda sustentável.
Jarina: Há formas de conciliar o engajamento nas redes com uma prática realmente sustentável de consumo?
Carol: Sim, eu acho que exige uma consciência social e política bem detalhada sobre a lógica da moda sustentável, do que a gente entende sobre sustentabilidade. E, principalmente, é preciso trocar o olhar do que compramos e mantivemos com a gente por muito tempo, que durou em nossos armários, as histórias que eu tenho com essas peças. É necessário produzir conteúdo que ensine a repetição, a transformar a peça, o upcycling, a valorizar a história do que já existe no mundo, porque a gente não precisa produzir mais peças, sabe?
Estamos numa exaustão tanto do meio ambiente, quanto de questões de trabalho exploratórias, em que precisamos rever a forma que nos relacionamos com esse consumo. Então, mudar o foco do produto, tirando do processo de acúmulo para o afeto e a história pessoal é um caminho difícil e que eu escolhi trilhar. Não é tão recompensado pelo algoritmo, você vai construindo uma comunidade no decorrer do tempo e a longo prazo. Apesar disso, é muito potente socialmente, a gente cria conexões de verdade e pensa em projetos de impacto social, o que é muito importante. Precisamos voltar a falar de moda como política, como uma intervenção, e não só como performance.
Nos bastidores do garimpo: o olhar de quem vive do vintage
Entre as discussões sobre a popularização dos hauls e a aceleração do consumo de segunda mão, ouvimos também a perspectiva de uma dona de brechó vintage que prefere não se identificar. B. viu o interesse pelo vintage crescer junto com a mudança no perfil dos clientes. O que começou como um projeto pequeno e flexível, hoje acompanha de perto o impacto das redes sociais na forma como as pessoas consomem moda de segunda mão. Entre clientes que chegam em busca de peças icônicas e outros atraídos por tendências momentâneas, ela percebe tanto o avanço da consciência sustentável quanto o apelo estético guiado pelo algoritmo, e equilibra isso com o desafio de manter curadoria e preços alinhados ao propósito original do brechó.

Jarina: Como começou o seu brechó e qual é o conceito por trás da curadoria das peças?
B: O brechó começou em 2018, através da paixão por eles e a necessidade de um trabalho flexível, que acolhesse uma das idealizadoras que havia acabado de se tornar mãe. Após sua saída, continuei com o projeto que foi crescendo organicamente. Dentro do meu trabalho prezo pela sustentabilidade, exclusividade, qualidade e acessibilidade.
Jarina: De onde costumam vir as roupas que você vende? Você garimpa pessoalmente ou recebe doações?
B: Direto de fornecedores, pessoas físicas e entidades filantrópicas. Faço questão de pagar pelas peças que me trazem.
Jarina: Você já sentiu o impacto da popularização dos vintage hauls e da revenda online no seu negócio?
B: Meu brechó é focado praticamente em peças vintage e tenho acompanhado sua popularização, além da desconstrução do preconceito com as roupas de segunda mão, vejo isso de forma positiva, que fomenta pequenos empreendimentos e incentiva o reaproveitamento.

Jarina: A demanda por peças vintage aumentou nos últimos tempos? Isso trouxe mais lucro ou mais dificuldade para manter os preços acessíveis?
B: Sim, aumentou. É uma pergunta complexa, primeiro porque o custo da peça envolve fontes variáveis e necessidades específicas, então, o preço pode variar… É fato que se a demanda aumenta, os valores do custo final da peça também aumentam. Segundo, o lucro envolve não só uma precificação adequada, como também um amadurecimento do modelo de negócio e segmento. Muitos brechós possuem foco em outras peças que não o vintage, e por isso, pode ser indiferente a eles. E, finalmente, temos todo um contexto social e econômico que envolve o mercado têxtil…Então depende.
Jarina: Você acha que o comportamento dos clientes mudou com a influência das redes sociais?
B: Sim, tornou a busca por brechós ainda maior.
Jarina: A geração Z é um dos públicos mais presentes no seu brechó? O que eles geralmente procuram?
B: Ainda não, mas tem crescido. Geralmente peças dos anos 2000, mais conhecido como y2k.
Jarina: Na sua opinião, esse público está realmente interessado em consumir de forma consciente, ou busca mais uma estética?
B: Temos os dois, um estudo recente aponta que tem crescido consideravelmente o público que opta por escolhas mais conscientes e sustentáveis, mas como as redes sociais podem influenciar muito no desejo de pertencimento, não podemos descartar uma tendência estética.
Jarina: Você já teve experiências com pessoas comprando em grande quantidade para revender ou gerar conteúdo?
B: Sim.
Entre as críticas ao “vintage acelerado”, também existe quem veja nesse movimento um lado construtivo. B. destacou que o aumento do interesse por roupas de segunda mão ajudou a desmistificar preconceitos antigos e ampliou o alcance de pequenos negócios. Para ela, mesmo que o consumo sustentável, em alguns casos, se limite a uma estética, ainda assim fomenta a busca por opções que reduzem o impacto ambiental.

Segundo a empreendedora, a quantidade de roupas no mundo, alimentada pelo ritmo das fast fashion, é tão grande que dificilmente haverá escassez. Esse excesso, explica, também é resultado de contêineres cheios de peças descartadas por países que não têm capacidade de reciclagem têxtil, e que acabam chegando ao Brasil para serem distribuídas em comunidades e bazares. Nesse sentido, o aumento da compra de roupas de segunda mão não apenas movimenta a economia local, mas também beneficia entidades filantrópicas e pequenos vendedores, criando uma rede de impacto que vai além do mercado da moda.
No final das contas, o “vintage fast fashion” nos força a questionar: estamos realmente consumindo de forma consciente, ou apenas encontrando um novo palco para a cultura do excesso? A resposta reside em repensar nossos hábitos de compra, valorizar a longevidade das peças e reconhecer que a verdadeira sustentabilidade vai além da estética, focando em um propósito maior de consumo ético e responsável.
Escrito por: Jarina Milena | Editado por: Ana Carolina Gomes
Por Jarina Milena

