
Quem definiu o Brasil com S?
Entre alfaiatarias neutras e a busca por uma moda com identidade, o desfile da Mondepars reacende o debate sobre o que é – e o que não é – moda brasileira.
O desfile da coleção de inverno 2025 da Mondepars, marca comandada por Sasha Meneghel, aconteceu em junho no Theatro Municipal de São Paulo. A apresentação contou com a abertura da modelo Carol Trentini e a trilha sonora ao vivo da Orquestra Jovem da Bahia, regida pelo maestro João Carlos Martins. No palco, a marca reafirmou sua aposta em uma alfaiataria marcada por silhuetas precisas, tecidos estruturados e tons sóbrios.
Nas redes sociais e na mídia especializada, a repercussão veio em dois blocos principais. De um lado, elogios à evolução técnica da marca em relação à coleção de estreia, destacando a qualidade dos materiais, o refinamento das peças e a escolha por uma estética atemporal. De outro, uma onda de críticas: algumas apontando para a semelhança da coleção com marcas internacionais, outras questionando a ausência de referências à identidade brasileira.
Foi esse último ponto que mais acendeu o debate — e que ecoa além da passarela: afinal, o que se espera da moda brasileira hoje? E quem, de fato, pode ou não ocupar esse espaço?
É com S ou com Z?
Carnaval, samba, bossa nova, biquíni, Gisele Bündchen. Ao longo do século 20, o Brasil foi exportando, aos poucos, imagens e símbolos que se tornaram sinônimos de nacionalidade. Não por acaso: na década de 1930, Carmen Miranda ganhou o posto de “embaixadora cultural” durante a política da boa vizinhança entre Estados Unidos e América Latina. Foi com ela que o Brasil se apresentou ao mundo como alegre, tropical, exuberante — ainda que boa parte desse Brasil fosse mais construção estética do que reflexo da realidade.
Ao mesmo tempo, o governo de Getúlio Vargas reconhecia no carnaval um símbolo nacional eficiente e popular. Sob sua gestão, as rádios passaram a tocar marchinhas e sambas em larga escala, transformando a festa em produto cultural e ferramenta de coesão social. Décadas depois, nos anos 90, foi a vez das supermodelos — Gisele Bündchen, Adriana Lima, Alessandra Ambrosio — ocuparem o imaginário global com seus corpos esculturais e bronzeados, reforçando a ideia de que o Brasil era um país feito de praia, biquíni e pele à mostra.
Mais recentemente, o brasilcore surgiu nas redes: verde e amarelo, camisa da seleção, estética pensada para exportar uma ideia de Brasil. O resultado é um imaginário construído por elementos comerciais e midiáticos que pouco conversam com a complexidade e a diversidade do país real.
Como falar em brasilidade se um mesmo país abriga temperaturas de 6ºC no Sul e 35ºC no Norte, se o artesanato do Nordeste não se repete em nenhum outro lugar, se em São Paulo o dress code diário remete mais ao escritório do que ao bloco de rua?
O Brasil numa alfaiataria cinza
É nesse cenário que surge a proposta da Mondepars: roupas neutras, bem cortadas, com estética sóbria e minimalista. A marca, desde sua estreia, deixou claro que seu foco era a criação de peças com qualidade e durabilidade, voltadas para um público interessado em sofisticação discreta. A segunda coleção seguiu essa linha, apresentando peças que poderiam facilmente habitar o closet de uma consumidora urbana e conectada às tendências globais.

“A discussão é menos sobre a roupa que esta sendo produzida, embora isso seja muito importante, mas sobre o que leva a construção dessa roupa. Porque quando entendemos isso, encaixamos esse produto em uma realidade, em um contexto”, Sara Brunelli, jornalista de moda e dona do perfil Moda Crônica.
Apesar disso, críticas surgiram justamente pela falta de identidade local. Para Sara, a estética escolhida parecia excessivamente genérica e acima de tudo, segura, uma vez que se aproxima muito de uma estética comercial, fácil de ser vendida.
“Não é uma marca que bebe do Brasil para construir algo novo. E não é que a alfaiataria, o cinza, o neutro não possam estar numa marca brasileira. Eu acho que a discussão é menos sobre a roupa que esta sendo produzida, embora isso seja muito importante, mas sobre o que leva a construção dessa roupa. Porque quando entendemos isso, encaixamos esse produto em uma realidade, em um contexto.” reflete ela, que também chama atenção para o fato de ser uma coleção que se diz tão preocupada com sustentabilidade e enaltecimento do artesanal nacional, mas peca na falta de transparência dos processos de produção.
Esse discurso, inclusive, foi um dos pontos mais questionados. Hoje, valores como o feito à mão, o uso de tecidos naturais e a valorização da mão de obra local se tornaram quase obrigatórios para marcas que desejam se posicionar no mercado. O problema é quando essa narrativa se transforma em estratégia de marketing, com informações limitadas sobre a cadeia produtiva.
“Não basta dizer que uma peça é artesanal: é preciso revelar quem a produziu, como foi remunerado, em que condições trabalhou”, argumenta a jornalista. Sem essas informações, o risco é cair num greenwashing sofisticado — esteticamente bonito, mas vazio de coerência.
Há também uma discussão sobre o que significa romper com estereótipos. A Mondepars se posiciona como uma marca que quer mostrar que o Brasil não é só estampa tropical e roupa de praia. Mas, para isso, é preciso mais do que recusar o óbvio. É necessário construir algo novo a partir de uma escuta genuína da realidade brasileira. Não basta negar os clichês; é preciso apresentar outras referências com profundidade.
O que é moda brasileira, afinal?
Em meio a tantas críticas surge a pergunta: existe uma estética brasileira? E é possível apontar o que é ou não moda feita no Brasil?
“Acho complicado e até pretensioso querer definir a cara da moda brasileira”, afirma o pesquisador e criador de conteúdo Renato Paiutto. “Toda roupa feita no Brasil já é moda brasileira. Ainda associamos brasilidade ao colorido, ao exuberante, à sensualidade. Mas a brasilidade contemporânea também pode ser neutra, minimalista e conectada ao mundo. O risco está em reduzir o Brasil a um só visual, seja ele qual for”. Para ele, em vez de uma única estética, o país oferece pluralidade “temos estilistas misturando referências internacionais com culturas locais, com vivências próprias. E é isso que enriquece a moda nacional.”
“A moda nacional é feita por pessoas brasileiras, para pessoas brasileiras, a partir de uma vivência brasileira. De olhar pra gente, ao nosso redor, valorizar quem está produzindo, construindo e estudando aqui, e a partir disso ter uma criação que é símbolo da nossa cultura”, destaca ainda a consultora de estilo, Sara Brunelli.
Ela também rejeita a ideia de um visual único. “Não dá pra resumir o Brasil em um conjunto de cores ou estampas. A crocheteira do meu bairro, a marca de upcycling do interior, as grifes do Rio e de São Paulo. Todas são expressões válidas de brasilidade. O Brasil é continental, e nossa moda precisa refletir isso.”
A discussão, portanto, vai além da roupa em si — trata da origem das ideias, dos processos, da intencionalidade. Nesse sentido, a alfaiataria minimalista também pode ser parte da moda brasileira, desde que esteja conectada a processos locais, à valorização dos profissionais que a tornam possível e a um pensamento que vá além do visual.
“A moda nacional é feita por pessoas brasileiras, para pessoas brasileiras, a partir de uma vivência brasileira. De olhar pra gente, ao nosso redor, valorizar quem está produzindo, construindo e estudando aqui, e a partir disso ter uma criação que é símbolo da nossa cultura”, pontua a dona do perfil Moda Crônica. Valorizar a moda brasileira é olhar para esse ecossistema: quem cria, quem produz, quem consome. E isso vale tanto para Sasha quanto para a crocheteira da esquina.
Portanto, para Renato e para Sara, é na origem da criação, na intenção e na construção dos significados que se reconhece uma moda com identidade.
Moda não é só roupa: é apoio e escolha
A discussão que o desfile da Mondepars levantou é menos sobre os looks e a Sasha em si e mais sobre o estado da moda brasileira atualmente. Se por um lado a marca não representa todas as camadas da moda nacional, por outro, também não precisa carregar esse fardo sozinha.
Como lembra Renato, “o acesso restrito é estrutural. A Sasha está tentando construir algo dentro do que ela acredita, e o julgamento que fazemos sobre ela muitas vezes reflete mais nossas expectativas e frustrações do que a proposta real da marca.”
O maior desafio da moda brasileira hoje é estrutural. Ainda há pouca valorização de quem produz com significado e escassez de incentivo para marcas pequenas e inovadoras. Ainda é difícil sobreviver fazendo moda autoral no Brasil. Enquanto alguns poucos nomes concentram mídia, investimentos e visibilidade, muitos outros — talentosos, ousados, cheios de repertório — encerram suas atividades por falta de apoio.
Ou seja, não dá para falar de brasilidade sem falar de incentivo, valorização da mão de obra, remuneração justa e condições reais para criação. A cadeia produtiva da moda ainda depende de costureiras mal remuneradas, de profissionais invisibilizados e de uma lógica que favorece quem já tem acesso.
No fim das contas, fazer moda no Brasil é uma escolha política. Escolher o que contar, quem representar, como produzir, tudo isso compõe a narrativa de uma marca. Por isso, o desfile da Mondepars não foi apenas uma vitrine de tendências. Ele se transformou em espelho das tensões que atravessam a moda nacional: o desejo de internacionalização, o medo da superficialidade e o desafio constante de se fazer coerente entre o discurso e a prática.
Moda não é só sobre o que se veste: é sobre quem pode vestir, quem pode criar, quem pode contar a história. E, talvez, seja hora de pararmos de esperar que alguém defina o que é o Brasil. Porque o Brasil, plural e vivo, já está sendo criado todos os dias por quem veste, costura e imagina outros futuros possíveis.
Escrito por: Milena Resch de Oliveira | Editado por: Giovanna Té Bassi

