Moda Circular, Brechós e o Valor do Reuso
Em meio à urgência climática e ao fast fashion que dita o ritmo das vitrines, uma nova consciência começa a costurar o futuro da moda: a do reuso. E, junto dela, vemos a popularização da moda circular, que parte dos princípios da economia circular e propõe uma nova forma de pensar o consumo: em vez de descartar, reinserir.
A ideia é dar novas vidas às roupas, calçados e acessórios que perderam seu uso inicial, seja por meio de brechós, bazares, trocas ou de práticas como o upcycling, que transforma materiais descartados ou subutilizados em produtos de maior valor e durabilidade. Assim, a moda circular busca estender o ciclo de vida das peças, reduzir o desperdício e minimizar o impacto ambiental da indústria têxtil, uma das mais poluentes do mundo.
Segundo dados da S2F Partners, cerca de 4,6 milhões de toneladas de lixo têxtil são descartadas anualmente só no Brasil. Na moda circular, o fim de uma peça nunca é realmente o fim, mas o começo de um novo ciclo. Aqui a proposta é diminuir esse impacto, oferecendo alternativas mais conscientes e acessíveis de se vestir.

O foco não é extinguir o varejo de moda tradicional, mas repensar o consumo e quebrar o preconceito ainda existente em torno das peças de segunda mão. Afinal, estilo não está na etiqueta, mas sim na forma de se expressar.
A moda circular abriu espaço para novas formas de consumo, e os brechós se tornaram os grandes protagonistas desse movimento. Com foco no reuso e na valorização do que já existe, esses espaços ganharam força e passaram a ocupar um lugar de destaque tanto no mercado quanto no imaginário coletivo.
Muita dessa visibilidade veio durante a pandemia, quando as pessoas buscaram novas formas de renda seja vendendo roupas, acessórios ou objetos de decoração, impulsionando plataformas de venda online, como o Enjoei. Hoje, por conta das redes sociais, brechós e bazares conquistam cada vez mais visibilidade, seja pela proposta de consumo acessível, pela curadoria de qualidade, pela autenticidade das peças garimpadas, ou pela tendência das peças Vintage.
Esse movimento também deu origem a uma nova geração de criadores de conteúdo que compartilham suas descobertas e experiências com o público. Um exemplo disso é a influenciadora Victoria Zattoni, que viralizou nas redes sociais ao compartilhar vídeos garimpando peças únicas e dando nova vida a elas por meio de pequenas reformas e customizações.
Formada em Direito, Victoria Zattoni acumula hoje mais de 400 mil seguidores apenas no TikTok. Nos seus vídeos, ela mostra como é possível reaproveitar peças e encontrar verdadeiros tesouros onde muitos veem apenas descartes. Sua trajetória nas redes começou em 2019, quando passou a compartilhar vídeos de DIY, lifestyle e vlogs dos seus garimpos em brechós em seu canal no YouTube, sempre com o olhar atento de quem entende o valor do reuso e da criatividade.
“Com oito anos eu já costurava e também sempre fiz restaurações das minhas coisinhas. Eu garimpava, fazia curadorias e tal. Foi uma coisa muito natural. Um ou outro me perguntava o que eu fazia, ouvia que eu tinha feito alguma coisa e queria saber como aquilo foi feito. Aí eu fui postando, primeiro nos stories, depois vi que estava dando certo e comecei a postar no Instagram.”
Atualmente, além de influenciadora, Victoria é dona do brechó Veezee, onde vende as peças que garimpa e também aquelas que transforma por meio de customizações. Ela conta que a ideia de criar o brechó surgiu a partir dos inúmeros pedidos de seus seguidores, que já confiavam em seu olhar e em seu trabalho. Com a ajuda do seu parceiro, ela decidiu montar o site e transformar o hobby em um negócio.
“Depois de muito tempo postando vídeos e mostrando as coisas que eu garimpava, as pessoas começaram a pedir: ‘essa peça que você mostrou e não levou, por que você não traz para vender?’. Muita gente dizia que confiava em mim e não conhecia brechós online. Então, depois de tantos pedidos dos próprios seguidores, eu e o Sté montamos o site”.
A história de Victoria ilustra uma tendência crescente no mercado da moda: o aumento dos brechós digitais. Com o apoio das redes sociais, esses espaços ganharam visibilidade e transformaram o garimpo antes restrito a lojas físicas e bazares em um novo modelo de consumo digital e sustentável, ampliando o alcance desse movimento e potencializando a busca por peças de segunda mão.
“As pessoas não tinham acesso à informação de como realmente os brechós e bazares podiam ser bons e não precisavam de todo aquele preconceito, que só era roupa de morto, que tinha energia ruim. Então, com muita conscientização e com muita influência de todos os criadores de conteúdo e de pessoas comuns mesmo, essa ideia foi amadurecendo, foi transmutando e mudando.”
A mudança de percepção sobre os brechós acompanha também uma transformação mais ampla na forma como consumimos moda. Em meio a uma geração que cresceu sob o ritmo acelerado do fast fashion e o desejo constante de novidade, surge uma nova consciência: é possível continuar experimentando, reinventando e expressando estilo mas sem cair no ciclo do consumo excessivo.
“A moda é cíclica, então tudo o que a gente precisa nós já temos em coleções anteriores que foram descartadas, entende? Essa ideia de consciência, não só em consumir porque foi despertado o desejo, mas também querer entender: será que eu realmente quero ou só estou usando porque todo mundo quer?”
Embora os millennials tenham iniciado esse movimento ao valorizar marcas com propósito e responsabilidade social, a Geração Z vem aprofundando essa relação de forma ainda mais intensa, demonstrando um verdadeiro interesse pela origem dos produtos e pelas práticas das marcas em relação ao meio ambiente.
Mesmo crescendo em um cenário de hiperconectividade, com acesso fácil à informação e a inúmeras opções de compra em grandes redes de fast fashion, essa geração tem demonstrado uma preocupação genuína com o impacto de seus consumos.
Jovens consumidores buscam marcas alinhadas a valores éticos e ambientais. Além de ressignificarem o ato de comprar, trocando o “ter” pelo “usar com propósito”. Não por acaso, os brechós e o conceito de moda circular ganharam força, transformando o garimpo em uma tendência de estilo e consciência.
Muito disso pode ser observado no movimento slow fashion, que busca alternativas mais éticas e sustentáveis, contrapondo-se à produção em massa do fast fashion. O foco está na criação de peças de maior qualidade, com maior tempo de uso, e na luta por melhores condições de trabalho na indústria têxtil.
As marcas associadas a esse movimento produzem roupas feitas para durar, com materiais sustentáveis e processos éticos, garantindo direitos trabalhistas e transparência na comunicação com o consumidor. Ao comprar dessas marcas, o cliente sabe de onde vem o material, como a peça foi produzida e quem a confeccionou, e, em alguns casos, parte do lucro é revertida para projetos sociais.
Mesmo com a crescente visibilidade dos brechós e o esforço de marcas e criadores de conteúdo em mostrar que peças de segunda mão têm história e significado, ainda há muito trabalho a ser feito para mudar a mentalidade coletiva em relação ao reuso. Muitos ainda associam essas peças a má qualidade ou energia “ruim”, enquanto outros criticam seus preços.
“Por trás de uma peça barata pode haver exploração, poluição e desperdício. O preço baixo muitas vezes cobra caro do planeta. É preciso reaprender o que é novo: novo não precisa ser recém-produzido — pode ser reusado, reciclado, reinventado. A indústria têxtil precisa de design com propósito, de criar produtos que durem, que possam ser reparados, reutilizados ou reciclados. E, principalmente, mais transparência em mostrar de onde vêm os materiais, como são feitos e quem os faz. Sem greenwashing”, diz Victoria.
O termo greenwashing, é usado para descrever quando marcas tentam parecer sustentáveis sem realmente colocar isso em prática. É uma estratégia de marketing que vende uma imagem ecológica enquanto, nos bastidores, continuam processos poluentes, exploração de mão de obra e desperdício de recursos. Na moda, o greenwashing se manifesta em coleções “eco-friendly” que usam apenas uma fração de materiais reciclados ou em campanhas que exaltam o consumo consciente, mas incentivam a compra constante de novas peças. No fim, é um discurso bonito que esconde impactos reais.
Diante desse cenário, cresce a importância desse olhar mais atento sobre o consumo e a origem das peças, reforçando o papel essencial da moda circular como caminho para um futuro mais sustentável.
Mais do que uma tendência, reutilizar se torna uma ferramenta de transformação capaz de prolongar o ciclo de vida das roupas, reduzir o descarte e ressignificar a relação que temos com o vestir. Ao apostar na circularidade, a moda não apenas reinventa o conceito de “novo”, mas também propõe uma mudança de mentalidade: consumir menos, cuidar mais e valorizar o que já existe.
“A moda circular é uma das respostas mais potentes à crise ambiental e ética que o setor da moda enfrenta. Ao propor o reuso e o upcycling de peças com foco em durabilidade e menor impacto ambiental, ela rompe com o modelo linear de ‘produzir, consumir e descartar’ que domina a indústria há décadas.”
A pesquisa Pegada Hídrica Vicunha, feita pelo Movimento ECOERA em parceria com a Vicunha Têxtil, mediu quanta água é gasta em todo o processo de produção de uma calça jeans, desde o cultivo do algodão até o uso final da peça. Segundo o estudo, são usados cerca de 5.196 litros de água, em uma única peça jeans.
Diante de números tão altos, priorizar o reuso, a troca, a revenda e o upcycling torna-se fundamental para reduzir a necessidade de produzir novas roupas e, consequentemente, poupar grandes quantidades de água e outros recursos naturais.
Ao prolongar o ciclo de vida das peças, a moda circular contribui para desacelerar o consumo e repensar nossa relação com o que vestimos, promovendo uma forma de consumo mais consciente, sustentável e responsável, e tornando esse modelo cada vez mais visível e concreto no mercado da moda.
Como ressalta a influenciadora: “Ela é a única saída possível diante da crise ambiental e social que a indústria enfrenta. O modelo de produção já mostrou seus limites, e continuar nesse caminho é insustentável. Por isso, não pode ser vista como modismo: é uma virada estrutural, sem a qual o futuro da moda simplesmente não se sustentaria.”
Além de uma mudança estética, o movimento em torno da moda circular é um convite à reflexão. Se vestir também é um ato político. Cada escolha de consumo carrega uma mensagem e, ao escolher reusar, reparar e reinventar, o consumidor costura junto o tecido de um futuro mais ético, criativo e sustentável.
Escrito por Moeisha Bastos | Editado por Ana Carolina Gomes


